janeiro 20, 2005

um passeio triste



a ilusão dos centros comerciais que tanto têm destruído o comércio ao ar puro, entra inevitavelmente pela nossa vida sem nos apercebermos.

no tempo em que gostava de rebuçados, dei muitos passeios com a minha mãe no antigo Chiado. O Alfarrabista do meu pai era e ainda é na Rua do Alecrim e por isso as ruas do Chiado sempre foram a minha segunda casa.

lembro-me da beleza indescritível da perfumaria da Moda e dos milhares de frascos de cores diferentes.

lembro-me da montra Pastelaria Ferrari com bolachas de buraco no meio com doce de framboesa.

lembro-me dos vidrinhos com miçangas da Casa Batalha toda forrada a Madeira e que tanto me preenchiam os meus sonhos de menina princesa.

lembro-me da Loja de Brinquedos da Benard onde passei tantas tardes a brincar.

lembro-me do elegante e simpático Senhor do ainda vivo elevador do Ramiro Leão cheio de senhoras de ancas largas que compravam cremes a kilo.

lembro-me principalmente de ser tão agradável e tão único.

agradeço aos meus pais todas essas tardes possíveis e manhãs de sábado vivido nesse Chiado tão elegante e que guardo com tanto carinho nas minhas memórias de criança.

por isso atrevo-me a partilhar "um passeio triste pelas lusitanas catedrais do consumo" por Manuel Graça Dias

"Uma noite destas, analisando com algum detalhe um mapa turístico esquemático, de 1950 ou de 1960, de uma cidade das ex-colónias, pude ler, a dado momento, impresso a negro, em letras grossas: «Centro comercial». A designação atravessava uma parte da planta preenchida por ruas miúdas em quase quadrícula e reportava-se à noção genérica de zona comercial ou «baixa», como também eram chamadas estas áreas na época (com as Ruas 31 de Janeiro ou Stª Catarina, no Porto, a tornarem absurda a excessiva vulgarização da palavra).

Hoje, o conceito deslocou-se um bocado e é praticamente inconcebível falarmos em centro comercial sem pensarmos logo numa estrutura fechada, climatizada, artificialmente iluminada, cheia de lojas, músicas e desafios supostamente consumistas, tendo sobrado um nome entre o pobre e o semi-saudosista para essas outras zonas encravadas nas cidades históricas, agora já só sempre decadentes: «comércio tradicional».

Os grandes centros comerciais ou «shopping centers», como gostam de lhes chamar, para poderem existir, dada a sua enorme necessidade de espaço, instalam-se quase sempre nas periferias das cidades onde os terrenos serão mais baratos e os acessos viários «facilitados».

Dirigindo-se à classe média-baixa motorizada, acampam ao lado das grandes auto-estradas urbanas (onde o barulho talvez já seja ensurdecedor para a especulação continuar a apostar em habitação) e assediam as autarquias, que com enlevo os disputam, com a promessa de melhoramentos automobilísticos de toda a espécie: túneis directos às suas caves de estacionamento, passagens aéreas pedonais para levar e trazer clientes entre as duas margens das vias rápidas, ramais paralelos, às vezes inteiras faixas novas com que põem a cidade ao seu serviço, fingindo beneficiá-la.

Os ditos «shoppings», depois de se posicionarem onde os compradores possam rapidamente chegar de carro para confortavelmente transportarem, eles próprios, o sem-número de inutilidades a que não saberão resistir, tentam estabelecer, depois, no seu interior, uma falsa e pouco contrastada imitação de uma «cidade-ideal».

A «cidade-ideal», para os cérebros inventores destas «máquinas de consumo», cuja imaginação não vai mais longe do que um passeio à Disneylândia ou aos parques temáticos dos arredores de Barcelona, é uma cidade já só de peões (primeira contradição), com corredores a fazerem de ruas, à volta dos quais se posicionam as lojas da globalização, por dentro de um enorme contentor ou barracão mais ou menos «festivo», de clima condicionado e permanentemente vigiado.

É o que Paul Goldberger (num artigo de 1996, intitulado «The Rise of the Private City») chama «ambientes urbanóides»: ambientes controlados, fechados e fortemente privados que pretendem fazer passar-se por espaços públicos. A cidade verdadeira, o verdadeiro «espaço público», é um território de grande liberdade e de imprevisto, de alguma dureza às vezes, de contrastes (de clima e de cheiros), de confrontos entre raças e classes, géneros e idades.

A cidade do consumo não. O «shopping» começa por controlar as entradas e expulsar os indesejáveis. Jamais veremos, num centro comercial, grupos de garotos pretos ranhosos em correrias, por exemplo, ou ciganas a vender atoalhados, um carrinho de castanhas a sério, os gritos dos feirantes. O sol que entra pelas clarabóias pouco nos aquece, não bafejamos o ar frio em frente no Inverno, não fugimos à chuva em busca de um café. Não fotografaremos nunca alguma coisa que nos agrade (primeiro, porque nada nos agradará e, depois, porque são proibidas (!) as fotografias num «centro comercial»).

A própria alegria é formatada, entre os filmes americanos a cheirar a pipocas e as tecnológicas «máquinas de diversão» de inspiração belicista, entre os brinquedos convencionados («barbies» e consolas) e as sucessivas invenções dos vendedores, sem nenhuma espécie de ligação ao conjunto das festividades mais ou menos tradicionais (Dias dos Pais e das Mães, de São Valentim, de Bruxas e Halloweens, de Reis).

A cidade do consumo é também higiénica: batalhões de limpeza mantém irrepreensíveis os mármores em mosaicos dos seus pavimentos, os vidros transparentes das suas montras. Lá dentro, o tempo não passa; não se envelhece, não se adoece, não se espirra, não se cresce, não subsistem crises. Vigiados, protegidos, afastados dos pobres, dos drogados e dos delinquentes, poderemos viver o sonho de sermos ricos, de consumirmos, de sermos materialmente muito felizes. A «cidade dentro da cidade», os seus vigilantes, as suas câmaras tomam conta de nós.

As feiras ao ar livre talvez sejam os respeitáveis antepassados das zonas comerciais urbanas. Por muita ideia higienista que a burocracia de Bruxelas invente, penso que não se conseguirá impedir a continuação das feiras, a alegria das feiras, a balbúrdia, o movimento, a urbanidade dos espaços abertos percorridos por gente que vê, compra, dialoga, ri, apalpa, mexe, regateia, grita ou apenas se diverte. Na chamada Europa, na civilizada Alemanha ou na educada França, as feiras subsistem, têm uma enorme tradição e continuam, regulares, abastecedoras, orgulhosamente pujantes, ocupando as praças centrais ou secundárias em vários dias da semana, usando a cidade e pondo os seus habitantes a usá-la.

Mas Lisboa e Porto, por exemplo, não têm, nem (muitas) feiras, nas suas praças abertas, nem tão-pouco zonas luxuosas de comércio sólido, elegante, caro, em outras ruas deliciosas, momentos rápidos, olhando as montras, enquanto seguimos à procura do velho quiosque dos jornais. É só aquele comércio foleiro das lojas espanholas, dos «franchisings» de vestuário e alimentação, é só um progresso de anunciante de telemóvel, discussões estéreis sobre «topos de gama», performances de som ou «home cinema», as vantagens das marcas, um qualquer automóvel ou electrodoméstico. Portugal tem dos climas provavelmente mais estáveis e amenos de quantos existem nesta parte do mundo. E no entanto a paixão pelos sítios fechados, de ar climatizado e reciclado, parece ser enorme. Que «dopping» é este? Que vazio é este? Que modos são estes de passar os dias, as tardes, entre o cheiro a creolina dos corredores das casas de banho e os fritos das «praças da alimentação»? Que graça poderá ter um continuado «hamburguer» ao balcão, ao lado da rapariguinha que bebe o café comentando realidades de cabeleireira, face a uma sopa fumegante num tasco «real» e barulhento atrás da Feira da Ladra?

Uma cidade potente tem de tudo, oferece de tudo, experimenta tudo. Quem por enquanto só gostar de «shoppings» de periferia, por lá arrastará os «piercings» em busca de namorada nesse simulacros de espaço público, nessa tristeza sonâmbula de tardes de domingo em bichas na auto-estrada.

Mas existem outras coisas. Existem ruas (centros) comerciais a sério, com céu verdadeiro, com ar verdadeiro, com chuva ou neve verdadeira. E existem tendas e becos e mercados e explosões de fogo-de-artifício e vendedores ambulantes e produtos frescos e flores ou roupa directamente da fábrica, com defeito. E eléctricos e barcos e carros e passeios e árvores e escadarias a unir isto tudo.

A cidade é complexa, multifuncional, colorida, vária, arriscada, surpreendente. A imitação comercial, que tanto fascina a classe média, é só um sufoco «seguro»."